
Documento facilita a regularização de áreas com deficit de reserva ambiental obrigatória em MS e em outras unidades da Federação – Foto: Rodolfo César
A Polícia Federal (PF) em Mato Grosso do Sul revelou, na semana passada, um esquema milionário que envolve a grilagem de terras da União localizadas em áreas do Pantanal. Conforme as apurações até o momento, os investigados acabam deturpando o uso de um “tesouro” que existe no Estado – um mecanismo para garantir a conservação ambiental – e convertem esse potencial para fomentar a grilagem de terras, a falsificação de documentos e a formação de quadrilha. E o que era para ser protegido, gera, na realidade, infrações ambientais.
O “tesouro” em questão são os títulos de cota de reserva ambiental estadual, os TCRAEs. Eles são exclusivos para Mato Grosso do Sul, que já fez a devida regulamentação, e facilitam a regularização de áreas com deficit de reserva ambiental obrigatória tanto no Estado quanto em outras unidades da Federação.
Quem orienta sobre o uso desse título no Estado, o qual se transforma em moeda no setor rural, é o Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Imasul), por meio do seu Sistema Imasul de Registros e Informações Estratégicas do Meio Ambiente (Siriema).
O Decreto Estadual nº 13.977, de 5 de junho de 2014, definiu que todo proprietário rural que detivesse menos de 20% dentro de sua área total em reserva legal precisaria criar essa área de proteção.
Porém, é possível haver a compensação a partir do mecanismo dos títulos de cota, que foram regulamentados com a Resolução Semagro (atual Semadesc) nº 673, de 14 de março de 2019.
As medidas para tirar proveito do título são muito técnicas, o que exige a participação de profissionais como topógrafos, engenheiros e cartógrafos e empresas de engenharia que atuam com mapeamento e cartografia.
Nessa investigação da PF, um dos envolvidos é justamente um engenheiro cartógrafo, Mário Maurício Vasquez Beltrão. Ele é um dos sócios-proprietários da Toposat Engenharia e Ambiental Ltda., que presta serviços de desenvolvimento e licenciamento de programas de computador e tratamento de dados, além de atividades relacionadas à arquitetura e engenharia, e que tem um capital social de quase R$ 2 milhões, tendo sido fundada em setembro de 2002. A empresa foi alvo de mandado de busca e apreensão.
Por se tratar de um negócio que envolve produtores rurais que precisam compensar passíveis ambientais e gerar recursos para outros donos de propriedades que têm áreas conservadas, há também empresas especializadas que fazem a orientação sobre esse mercado específico.
Elas prestam consultoria para indicar os melhores procedimentos para garantir o atendimento à legislação. Nesse caso, não há nenhuma relação com a investigação que a PF conduz no Estado.
“Os TCRAEs são títulos que representam áreas de vegetação nativa, ou seja, partes de outras propriedades com excedente de reserva legal, que podem ser compradas ou alugadas para compensar o deficit de outro imóvel”, detalhou a empresa Biofílica, que pertence ao grupo Ambipar e que tem uma página na internet direcionada para atender fazendeiros que precisam se regularizar com relação ao respeito de legislação ambiental.
Nesse modelo, o TCRAE pode ter vigência temporária ou perpétua, e a responsabilidade da área é integralmente do proprietário da terra que oferece o título.
Além disso, o procedimento para garantir a compensação envolve a assinatura do pedido de transferência de cota, sem burocracia com registro de imóvel, o pagamento de Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), entre outros.
Os documentos necessários são apenas o título de cotas de reserva legal estadual e o Cadastro Ambiental Rural (CAR). Um outro modelo de compensação – o qual envolve a compra de uma unidade de conservação, por exemplo – depende da matrícula da área, geolocalização do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), documentos pessoais, CAR, Imposto sobre Propriedade Territorial Rural (ITR), Certificado de Cadastro do Imóvel Rural (CCIR), etc.
PREÇO DO TÍTULO
O Pantanal é um território de rica biodiversidade. Isso significa que, ao longo de sua extensão, é possível encontrar paisagens do Cerrado, da Mata Atlântica e até da Amazônia. Desse modo, propriedades em outros biomas no Brasil podem encontrar resguardo na compensação ambiental a partir de “TCRAE pantaneiro”.
Em sites de agronegócio, esses títulos podem valer a partir de R$ 3,5 mil por hectare, chegando a valores acima de R$ 7 mil/ha. O que compõe esse valor, por exemplo, é o tipo de vegetação onde está sendo encontrado o título. As áreas com Mata Atlântica costumam ter preço mais alto no mercado, enquanto para o Cerrado, esse preço fica em cerca de R$ 5 mil/ha.
“[…] Mato Grosso do Sul apresenta 288.258,66 ha de área de restauração de vegetação proposta para constituição de reserva legal. Uma alternativa aos passivos de reserva legal é a compensação, que pode ser feita por aquisição de títulos de cota de reserva ambiental ou por doação de área localizada no interior de unidades de conservação de domínio”, pontuou a pesquisadora Évelyn Camila Casadias Pinheiro, que elaborou o estudo “Sensoriamento remoto aplicado à regularização ambiental de imóveis rurais em MS”, pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
“Nesse sentido, o Estado apresenta uma área de 414.501,60 ha de proposta para constituição de TCRAEs, com a finalidade de atender aos passivos de reserva legal dos imóveis que precisam se regularizar”, complementou.
Investigação
A Operação Pantanal Terra Nullius, deflagrada no dia 8, visa desarticular a grilagem de terras da União e mirou alvos que são empresários, fazendeiros e servidores públicos estaduais.
“As investigações indicam que empresários e fazendeiros da região, em conluio com servidores da Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural de Mato Grosso do Sul [Agraer], falsificavam documentos e os inseriam em processos administrativos de titulação para obterem áreas situadas dentro do Parque Estadual do Pantanal do Rio Negro, localizado em faixa de fronteira”, detalhou a PF, por meio de nota.
Só em sequestro de bens para tentar gerar a compensação pela grilagem e outros crimes, foram bloqueados mais de R$ 3 milhões. O inquérito policial apura ilícitos como associação criminosa, usurpação de bens da União, falsidade ideológica, inserção de dados falsos em sistema público e infrações ambientais.
O que as autoridades apontaram é que o esquema funcionava da seguinte forma: se ninguém identificasse a origem pública da terra, a titularização era concluída de forma ilegal.
Caso a fraude fosse percebida durante o trâmite, o processo era cancelado sob a justificativa de irregularidade, alegando-se erro no reconhecimento da titularidade da área. Fonte: Correio do Estado