PRANTO NEGRO (Edson Moraes)
Ela é Walthenia. É mulher. É negra. Nasceu com anemia falciforme. Morreu de anemia falciforme. Mas seu nome e sua luta sobrevivem para dar sobrevida ao levante dos excluídos, à igualdade na afirmação das diferenças, à manifestação das alegrias e das tristezas, das dores e dos amores, das idas e vindas dos seres humanos.
Ela será sempre Walthenia. Mulher. Negra. De sorriso negro e luminoso. De andar faceiro e cabeça erguida, de olhar sem medir ninguém e de doar-se sem cobrar o troco. Walthenia rebolava para defender sua causa, rebolava na dança da vida e da sua querida Império do Morro, desfilando nas passarelas a beleza e o frescor intangíveis de sua negritude humana e universalista.
Ela é a minha, a sua, a nossa Walthenia. Não importa se a conheça ou se jamais ouvir falar dela. A láurea que buscava era fazer com que a sociedade e as autoridades, os legisladores e os atores da convivência humana, reconhecessem a existência de diferenças que existem para fazer da pluralidade o oxigênio prático da teoria que conjuga o verbo conviver.
Ela é Walthenia, a poesia que fica. É o segredo misterioso da fênix renascida em cada tambor rufando na consciência dos que se trancam dentro de si para não ver que o negro sofre o sofrimento semelhante ao dos semelhantes que imigram, que são mulheres, que são especiais, que são homossexuais, que são ateus, evangélicos, católicos, kardecistas e umbandistas.
Walthenia fez sua parte e trouxe o “lá fora” dessas contradições para dentro do coração e da responsabilidade dos egocêntricos. Voz d´África, e no chão aberto de todas as raças, Walthenia cantou, dançou, sambou, lutou, amou, concebeu… e foi além de seus limites para, como na canção de João Nogueira, sublimar o poder da criação, porque será sempre a inspiração que deus nos dá: “É, faz pensar, que existe uma força maior que nos guia/Que está no ar bem no meio da noite ou no claro do dia/Chega a nos angustiar”. Por ela, então, que o povo comece a cantar.
*Walthenia Agda Costa, 36, como presidenta do Conselho Municipal de Saúde, representava Corumbá e o Estado no Movimento Nacional em Defesa da Saúde Pública, quinta-feira passada, em Brasília. Sentiu-se mal durante a marcha, foi levada ao hospital e morreu, vítima de problemas renais causados pela anemia falciforme. Presidia também a Associação Corumbaense das Pessoas com Doenças Falciformes (Acodfal) e era membro do Instituto Madê Korê Odara do Pantanal (IMKOP). Era passista da escola de Samba Império do Morro e sua luta foi fundamental para Corumbá avançar no processo de consciência sobre a igualdade racial e acender o debate e o combate à anemia falciforme, doença que tem a raça negra entre suas principais vítimas.