Nesta sexta-feira (6), é comemorado o centenário do nascimento do compositor Adoniran Barbosa, que imortalizou, em suas músicas, bairros como o Bixiga e o Jaçanã, em São Paulo. Para reviver sua história, o G1 listou alguns pontos da cidade citados nos sambas e outros ligados à sua vida.
As letras de Adoniran mesclam, com genialidade, a linguagem dos imigrantes italianos e expressões dos paulistas do interior do estado. “Muitas vezes tem-se a impressão de que a cidade é só pedra, só edifício. Porém, ela é constituída também por uma paisagem sonora. O Adoniran observa os diversos sotaques. Ele capta toda essa sonoridade e a utiliza em seus personagens e em suas canções”, diz Maria Izilda Santos de Matos, que é doutora em História, professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) e autora do livro “A cidade, a noite e o cronista” (Edusc) .
Os sambas também mostram um retrato de uma cidade que vivia dilemas que perduram até os dias atuais, como problemas de moradia ou ligados ao aumento tráfego de veículos.
Adoniran retrata as experiências cotidianas que observava em uma cidade que passava por um intenso processo de modernização. “Ele sempre olha a cidade que está em uma perspectiva de mudança acelerada. Ele tem uma admiração pela modernidade e uma nostalgia do tempo perdido”, diz a doutora em História.
Região central
Sergio Rubinato, de 66 anos, que trabalhou 13 anos com o tio Adoniran, conta que o compositor era um observador aguçado e ficava impressionado com as grandes obras de modernização da capital. “Ele acompanhou, por exemplo, a construção do Metrô. As praças que ficavam nas proximidades da Sé mudaram. Com as obras, tudo ficou muito bonito. A mesma coisa aconteceu com o Viaduto Santa Ifigênia. Ele ficou encantado. Não foi à toa que ele escreveu as músicas [Praça da Sé e Viaduto Santa Ifigênia]”, lembra Sérgio.
São abundantes as referências à região central de São Paulo, onde Adoniran Barbosa viveu durante décadas. Entre 1949 e 1962, ele morou com sua então mulher, Mathilde, no número 500 da Rua Aurora, no edifício Santa Ignez. Da sua janela ele via um sobrado, que foi ocupado por Joca e Mato Grosso, os célebres personagens da “Saudosa Maloca”. “Eles tinham um carrinho de madeira e trabalhavam na feira. Eles carregaram muitas vezes as compras da Mathilde. Como não tinham casa, eles ocuparam esse imóvel e guardavam o carrinho lá dentro. O Barbosa ouvia essas histórias e se inspirava. A casa foi demolida, como diz a música. O Joca morreu de tanto beber e o Mato Grosso acabou sendo preso”, afirma o sobrinho do compositor.
O sobrinho conta que, certa vez, o seu tio o convidou a comer um pastel. Ao passar pela Rua General Carneiro, eles viram um negro passar com um violão pendurado no pescoço e uma caixa pesada na cabeça. “Ele transpirava muito. Foi então que alguém gritou: ‘Chora na rampa, negão’. Meu tio ficou com isso na cabeça e sugeriu o assunto para Osvaldo Moles, que fazia o programa de rádio História das Malocas. Osvaldo fez um programa de 30 minutos inspirado no caso. Não demorou para virar um samba”, conta.
Jaçanã
O compositor nunca morou no bairro do Jaçanã. Adoniran participou de alguns filmes gravados na Companhia Cinematográfica Maristela, localizada no bairro. Talvez daí tenha surgido a inspiração para compor “Trem das Onze”.
O maquinista Antônio de Castro, de 83 anos, que fazia o trajeto Guarulhos-Tamanduateí, lembra de tê-lo visto na platarforma. “Nunca conversei com ele, mas o via na parte da manhã esperando o trem na plataforma da Estação Jaçanã. Não imaginava que ele ficaria tão famoso”, diz o maquinista. Castro também garante que o “Trem das Onze” da música nunca existiu. “O último trem que saía da Estação Tamanduateí chegava na Estação Jaçanã no máximo às 21h30”, conta.
Bixiga
O tradicional bairro do Bixiga também foi uma fonte de inspiração. Ele aparece no “Samba no Bixiga”. Adoniran, que era filho de imigrantes italianos, frequentava várias cantinas da região. “Ele vinha à unidade da [cantina] Conchetta, que fica na Rua Rui Barbosa. Ele gostava muito de uma boa massa, uma macarronada. Ele era mais chegado na cerveja do que no vinho”, conta o dono da cantina Walter Taverna, de 76 anos.
Como ia sempre ao restaurante, os dois acabaram se tornando amigos. “Ele se vestia muito bem e não tirava o chapéu da cabeça. Como ele vinha para comer e não para aparecer, a gente não ficava puxando muita conversa”, diz Walter, que é também presidente da Sociedade de Defesa das Tradições e Progresso da Bela Vista (Sodepro).
Walter não esconde a admiração pelo amigo. “Eu gostava da voz rouca”, afirma. Ele fez um belo painel com fotos de Adoniran que enfeitam um dos seus restaurantes.
Brás
O advogado Ernesto Paulelli, que inspirou o “Samba do Arnesto”, nasceu no Brás. Ele garante que nunca convidou o amigo para um samba e nunca lhe deu “um bolo”, como diz a canção. “Isso é coisa da cabeça dele”, assegura. Hoje com 96 anos, ele lembra com carinho que Adoniran, semanas após serem apresentados, em 1935, pediu-lhe um cartão de visitas. “Ele falou: ‘Você é Arnesto, porque seu nome dá samba. Você aduvida?'”, conta Ernesto, imitando a voz rouca do amigo. “Eu não aduvido mais”, ele respondeu. O compositor prometeu escrever, então, uma canção para o amigo. Aproximadamente 17 anos depois, Ernesto foi surpreendido com a música em sua homenagem sendo tocada na rádio. “Fiquei muito emocionado”, conta.
Mais tarde, Ernesto tentou dar um puxão de orelhas no amigo. “Adoniran, você me meteu em uma encrenca. Todo mundo me pergunta por que eu convidei você para o samba”, diz o advogado, que também era músico. Adoniran foi incisivo: “Arnesto, se não tinha mancada, não tinha samba”.
Quando questionado pelo amigo se havia gostado do samba, Ernesto declarou a ele: “Você me abriu ao meio. [Esse samba] foi a coisa mais bonita que me aconteceu”.
Parceria com os Demônios da Garoa
As composições de Adoniran ganharam notoriedade graças à parceria com o tradicional grupo Demônios da Garoa, fundado em 1949. Com os arranjos criativos e originais, os sambas conquistaram o carinho e o respeito de quem gosta de Música Popular Brasileira.
O sambista Sérgio Rosa, de 55 anos, integrante do tradicional grupo Demônios da Garoa, conta que o grupo, fundado por seu pai (Arnaldo Rosa), aproximou-se do compositor durante a gravação do filme “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, em 1949. Adoniran trabalhava como ator e os “Demônios” fizeram a trilha sonora. “A parceria começou efetivamente em 1951, quando Adoniran escreveu Malvina. Os Demônios gravaram-na e ganharam o concurso de músicas carnavalescas daquele ano. Em 1952, ele trouxe o samba ‘Joga a chave’. Com essa canção, o grupo foi campeão do carnaval pelo segundo ano consecutivo”, conta.
Em 1954, o grupo Demônios da Garoa estava em busca de criar uma identidade. Em um camarim da Rádio Nacional, os jovens cantarolavam “Saudosa Maloca”, que já tinha sido gravada por outro intérprete, quando Manoel da Nóbrega os ouviu e chamou o diretor da rádio para escutá-los. Segundo Sérgio, o diretor da rádio sentenciou: “Ensaiem essa música, porque ela vai ser sucesso”.
“Aquela maneira de cantar foi criada pelo Demônios da Garoa. Adoniran brincou e falou que eles tinham estragado a música. A música estourou, mas não tínhamos ainda um disco. Então, ele deu o Samba do Arnesto para os Demônios lançarem um 78 rotações com as duas músicas”, conta Sérgio. Depois do sucesso, vieram vários sambas como Iracema e Abrigo dos Vagabundos.
A sintonia entre Adoniran e o grupo explica o sucesso da parceria. “Meu pai tinha grande admiração por ele. Ele era a única pessoa que o chamava de João Rubinato (o nome verdadeiro de Adoniran). Ele dava sugestões sobre temas de músicas”, afirma Sérgio. Com a letra nas mãos, Adoniran procurava os Demônios. Nos anos 70, eles ensaiavam no apartamento de Toninho [Antônio Gomes Neto], na Praça Júlio Mesquita, que ficava num prédio azul, muito alto, ao lado do Hotel Lux. Como tinha medo de elevador, pedia para o porteiro chamar os amigos. “Pode avisar que eu não vou subir, não”, dizia, segundo Sérgio. “O pessoal descia para buscar os sambas”, conta.
O grupo sentiu de maneira especial a morte de Adoniran, mas percebeu que o sambista faz falta não só para os Demônios da Garoa, mas para toda a MPB. “Para a gente, aparecem várias composições que dizem: ‘Essa é um novo Trem das Onze’. Que nada. É muito difícil se equiparar. Nunca mais apareceu alguém que tivesse uma qualidade ímpar para compor como ele. Ele faz muita falta. O Adoniran foi com certeza a essência do samba paulista”, declara.
Um artista de várias profissões
Antes de ficar famoso, Adoniran Barbosa teve vários empregos. O primeiro deles foi ajudando o pai a carregar vagões da antiga São Paulo Railways. Depois, foi entregador de marmita, varredor em uma fábrica de tecidos, tecelão, pintor, encanador, garçom, metalúrgico e vendedor.
Nascido João Rubinato, no dia 6 de agosto de 1910, Adoniran só ingressou no rádio em 1933. Nos anos 1940, trocou de emissora e passou a trabalhar como radioator. Foi o começo da parceria com Osvaldo Moles e de uma carreira de sucesso.
Para o professor de história Francisco Rocha, autor do livro “Adoniran Barbosa: o poeta da cidade” (Ateliê Editorial), os empregos e os lugares por onde Adoniran passou antes de ingressar no rádio foram úteis ao desenvolvimento de seus personagens. “A história pode ser escrita do ponto de vista dos vencedores e dos vencidos, e a urbanização de São Paulo naquela época [os anos 1950] deixou muita gente à margem do progresso. Nessa época, ele está cantando o que era silenciado pelo progresso”, observa.
O nome artístico foi sugestão de um amigo que trabalhava nos Correios, e o “Barbosa” veio da admiração por um outro sambista, Luís Barbosa. “Pra cantor de samba, como ele mesmo diz, João Rubinato não ia pegar”, conta Rocha em seu livro.