O Arraial do Banho de São João de Corumbá é conhecido como o melhor de todo o Mato Grosso do Sul e o único do Brasil que mantém a tradição de banhar o Santo. Representa a valorização e o resgate das tradições folclóricas e da cultura popular que se manifestam através das rezas e crenças, cujas raízes estão presentes no sentimento e na alma do povo corumbaense. Começa na casa das famílias festeiras que reúnem parentes e amigos, em momentos de muita fé e devoção, e tem como ponto alto o banho de São João nas águas do Rio Paraguai, na prainha do Porto Geral.
Tudo segue um ritual criteriosamente estabelecido pela família responsável pela festa. Os preparativos começam cedo, antes mesmo do início do Arraial, que começou na segunda-feira (21) e prossegue até esta quinta-feira (24). O primeiro passo é a montagem do andor de São João, preparando-o para receber amigos e parentes do festeiro. Este ritual faz parte da vida de dona Epifânia da Silva Bastos, 80 anos, moradora na Rua 7 de Setembro. “É uma tradição na nossa família que já dura mais de 100 anos”, comenta. Católica fervorosa, como toda a família, ela lembra que recebeu a incumbência no fim da década de 60 de sua tia, Laurinda Tomásia da Silva.
Maria da Glória Silva Bastos Prado, filha de Epifânia, diz que a festa está enraizada na família desde a época do avô. “Com certeza, a nossa festa é a mais antiga da região. Já era realizada na Bolívia e foi trazida para Corumbá”, conta, lembrando que a família é de festeiros. Além de São João, comemoram São Sebastião e São Pedro. Aliás, é justamente no dia de São Pedro, 29 de junho, que a Festa de São João é encerrada.
“Hoje, às 18h30, vamos rezar o Pai Nosso e levantar o mastro. Geralmente no dia 23 levamos a imagem do Santo à missa, para ser abençoada. Como hoje não teve missa, fizemos isto no domingo, com um café da manhã em seguida”, descreve Epifânia, enquanto finalizava os preparativos no ‘barracão’ onde ocorrem as manifestações, preocupada também com o churrasco que será servido à noite. “A carne já está chegando e o nosso churrasqueiro, o Didi, também”, comenta, sem se esquecer que tudo será acompanhado de muita música.
A festeira comenta que já prepara a neta, Carla Helena, para receber a incumbência de continuar a tradição, afirmando já ter cumprido sua ‘tarefa’. Mas, mesmo com 80 anos, duas cirurgias para implantação de marca-passo e outras duas cirurgias devido a problemas no estômago, ela se diz pronta para “descer até o Rio Paraguai, banhar o Santo, voltar para a festa e dançar bastante”. A vitalidade demonstrada é creditada às graças alcançadas com São João.
Patrimônio
Depois de mais de 60 anos comandando o Arraial do Banho de São João, Epifânia faz questão de agradecer aos familiares e amigos “que sempre deram apoio, nos ajudaram a manter esta tradição”. Ela mostra alegria quando o assunto diz respeito ao registro do Banho como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial do Brasil. “Será muito importante para todos nós”, afirma, lembrando o apoio da Prefeitura de Corumbá que, nos últimos anos, revitalizou a festa: “Teve prefeito que até proibiu a gente de levar o Santo ao rio para o banho. Agora é diferente, temos apoio, o que está sendo muito importante para que esta tradição seja mantida em Corumbá”.
Enquanto concedia a entrevista e atendia alunas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, a festeira ainda retocava o seu andor. Maria da Glória, sempre por perto, lembrou que a montagem seguiu as orientações da mãe. “Ela sonhou que a imagem de São João seria colocada dentro de uma bacia. E foi o que aconteceu”, comenta, chamando a atenção das universitárias para o enfeite aos pés do Santo, em forma de nuvem. O andor ficou em terceiro lugar no concurso realizado na segunda-feira (21) pela prefeitura.
Em toda a cidade
As festas acontecem em mais de 100 residências de Corumbá, onde as famílias festeiras agradecem pelas graças alcançadas, simbolizando toda devoção e fé a São João Batista. É o caso do radialista Pedro Paulo Miranda, o “Pepê” e a irmã Rita Joana, que mantém a tradição há 45 anos, iniciada quando a mãe deles, “dona Carlinda”, fez promessa pela saúde do filho e teve o pedido alcançado. A partir de então, a mãe, que faleceu em dezembro de 2001, começou a organizar as procissões que levam a imagem de São João para ser banhado nas águas do Paraguai. Inicialmente seria por sete anos, mas o costume atravessou o tempo e até hoje é celebrado no bairro Nossa Senhora de Fátima.
Um hábito iniciado pela avó, há pelo menos sete décadas, é mantido anualmente pela festeira Reginalda Mendes Vera com a realização do “Arraial da Nhá Concha” no bairro Universitário. Depois da avó, a festa passou para a prima que, fez promessa para resolver um problema de saúde do filho, devendo render homenagens por sete anos. Passado o período e com o pedido atendido, a celebração parou. “Dona Concha”, mãe de Reginalda, resolveu assumir os festejos declarando: “São João, eu vou pegar sua festa, embora com sacrifício, mas vou fazê-la todos os anos”. Com o falecimento da mãe em 2008, a atual festeira deu sequência à tradição.
A promessa da avó Maria Mendes Vasquez, feita sete décadas atrás, que pedia saúde a um sobrinho doente, também motivou a família de Anne Aparecida Duarte a levar um andor para banhar a imagem no rio. “Temos muita fé, e se temos problemas, nos apegamos a ele (São João), que nos atende”, afirma Anne, lembrando que todos em sua casa têm devoção ao santo e são católicos de “muita fé em Deus”. As celebrações acontecem sempre na Rua Delamare, próximo à Ladeira Dona Emília.
Quatro vezes vencedor do Concurso de Andores da prefeitura, o jovem Alfredo Ortiz Ferraz, 22 anos, mantém o costume de mais de 60 anos do avô com a festa de São João na Rua Monte Castelo, no bairro Popular Velha. “Cresci neste espírito junino e de devoção ao Santo, e não quero que isso acabe”, diz.